quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A TOSSE


(por Sérgio Antunes)

Eu tusso. Bem, diria o leitor, quem não tosse? Aliás, acho que o leitor diria nada. No máximo, ele tosse e eu com isso? Ou então, só me faltava essa, cronista dizer que tosse, que tem frieira, que o exame de sangue acusou falta de bastonete.

Podia usar este espaço para reclamar do trânsito, falar mal do governo ou fazer um poema de amor. Mas não. Hoje tenho que falar da tosse. Evidentemente, não diria que tusso se não fosse relevante. Tusso e tusso muito. Por exemplo, já tossi três vezes desde a hora em que comecei esse lero-lero. E não é dessas tossinhas de missa, tossinha pra começar discurso. Decididamente, trata-se de uma tosse federal.

Não obstante, ninguém, absolutamente ninguém, leva a sério a minha tosse. Nem o leitor.
Na melhor das hipóteses, as pessoas se sentem um pouco incomodadas.

Quantas vezes tive que sair de cinema, teatro ou conferência, eu na assistência e o conferencista espantado diante da platéia toda prestando atenção na minha tosse, nem aí para o que ele falava.

Ou então em restaurante. Tusso, derrubo garrafa da mesa, arrasto toalha pro chão, pinga farofa do olho e rodeia gente, tapa nas costas, olhares incomodados de quem, tendo saído para se distrair, tem a incômoda sensação de que está diante de um moribundo agonizante.

É só entrar no elevador com mais alguém, começo a pensar que não posso tossir. Não, no elevador não. E pronto, tusso. Na mesma hora a outra pessoa se encolhe e já se imagina irremediavelmente contaminada por insidiosos vírus.

Ou seja, incomodo mas não desperto a menor comiseração.

Fosse eu portador de uma singela tuberculose, tivesse eu um pé engessado, um braço na tipóia ou uma simples ponte móvel, minimamente iria inspirar piedade, suscitar solidariedade. Mas eu, em absoluto. Ninguém se dá ao trabalho de se levantar no ônibus para dar lugar a quem tosse, nem existe lei criando tussódromos. Aliás, a bem da verdade, nem mesmo a medicina se preocupa muito com a tosse. Por exemplo, tontura é lipotímia, dor-de-cabeça é cefaléia, falta de ar é dispnéia. Mas tosse, como se chama a tosse? Tosse é apenas tosse. Confundida até com necessidade fisiológica. Igual a suor, a espirro, a cuspe ou a bocejo.

Um mendigo com uma bengala tem uma certa dignidade, um status na sua condição de mendigo. Maximiza os resultados arrecadatórios. Mas um mendigo com tosse, esse só incomoda. Até seus colegas de profissão.

A tosse limita minha vida. Cantar não posso, me esconder, nem pensar. Coçar o ouvido, especialmente o esquerdo, impossível. E quanto a vida amorosa. O leitor, e eu pergunto respeitosamente, o leitor já teve acesso de tosse fazendo amor ? Pois é. Logo, logo sou proibido de sair à rua depois das dez da noite ou de passar em frente a hospitais.

O pior são as coisas que a gente tem que ouvir. Receitas miraculosas e simpatias infalíveis. Ou velhas piadas: esta tuberculose ainda vai virar gripe. É bom cuidar da alma porque o corpo já foi. Ou diagnósticos: é o ar condicionado, o cigarro, o FMI, o RG.

O INSS aposenta por hérnia de disco, por extra-sístole e até por TPM. Por tosse, nem que tussa.

Cheguei mesmo a pensar numa associação. Trocar experiências e macetes, se organizar, enfim. Exigir dos outros uma postura politicamente correta com relação a nós, que tossimos. Afinal, ninguém tosse por gosto, embora tussa de desgosto. Não podia ser do tipo sociedade secreta. Tosse e dinheiro não dá para esconder. Dando certo podia até evoluir para uma bancada no Congresso. Ia ter a dos evangélicos, a dos ruralistas e a dos que tossem. Difícil mesmo seria fazer reunião.

Pois é. Eu tusso e minha tosse não desperta o menor interesse nos circunstantes.
Quer saber mais? Não tivesse eu que escrever esta crônica, ia ficar o dia inteiro tossindo, sem saber o que fazer com a minha tosse.

(Publicado no Jornal Estado de São Paulo, em 15/09/1999)

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